Estabilidade para os gatos
Na iminência de perderem a companhia dos gatinhos que circulam há anos pelo Centro Administrativo da Prefeitura do Rio, os servidores que ali trabalham já pensam em apelar para uma decisão salomônica de sua eminência, o prefeito. Não, não se trata de uma pendenga semântica. Os caridosos funcionários não aceitam, como quer a Secretaria de Defesa dos Animais, a transferência para o Campo de Santana dos bichanos, chamados carinhosamente pelos mais franciscanos não de vossa excelência, tratamento mais apropriado com as autoridades vizinhas, mas de fofinhos, de lindos e de qualquer adjetivo que conste do Aurélio ao Houaiss e que expresse amplamente a total domesticidade de nossos sentimentos ante um irresistível animalzinho abandonado.
Já tem gente - os pessimistas, os menos entusiastas- dando-se por derrotado, suspirando das janelas das repartições públicas, lamentando, choramingando por um saudoso miau. Será necessário retirar do centro administrativo tudo que é simples e belo para só então restar a burocracia municipal, a mobília da repartição, que é nada mais do que o tronco prensado, industrializado, transformado em algo funcional? Caberá aos funcionários apenas se aterem a seus carimbos e computadores, dando prosseguimento aos intricados processos administrativos, o que, de outro ponto-de-vista, é dar prosseguimento à vida, por mais chata que seja, em vez de cultivar a cada dia o pouco de super-herói que lhes restou, protegendo não a humanidade, mas uns poucos gatinhos, com os corações a disparar ante os certeiros pingos de chuva vindos do céu e, já num chuvaréu, os pêlos totalmente molhados?
Essa pode ser uma discussão menor, um gato no pátio a tremer, mote para parnasianos. Se bem que faço um convite para que discutamos sempre tudo que cerca a política ou os políticos. Hoje, é o gato com o seu novelo, imagem infantil, mas amanhã podemos ser chamados a nos indignarmos com a fraude na licitação, com a crise na saúde e, então, estarão em dia nossos argumentos, nossa retórica de botequim, aquela que não tenha simplesmente o objetivo de argumentar contra ou a favor dos 10% do garçom?
Se fosse um desenho animado, não nos preocuparíamos, o bichano não tardaria a abrir o guarda-chuva e a dançar serelepe. A felicidade estaria garantida. Nada de discussão aprofundada, só superficialidades coloridas. Mas é a vida real. Então, quantas crianças, futuras eleitoras, enquanto tentam entender essas frases longas, por entre vírgulas escorregadias, não estarão neste momento tomando partido não dos burocratas, mas dos gatinhos abandonados e sem-teto, guardando assim em segredo seus ressentidos votos para a maioridade, quando o poder ainda existirá, necessitando de alguém que o ocupe e de apoio popular. Quantas velhinhas não estão mencionando lembranças de gatinhos brincando com novelos, mensagens subliminares de que ainda somos pessoas com sentimentos.
Que esta discussão seja ao menos uma grande oportunidade para vereadores prometerem o bem; para o prefeito, aprová-lo, regulamentá-lo e até mesmo, se for necessário, fiscalizá-lo, amenizando nossa indiferença em relação à situação dos hospitais, das escolas e das crianças nos sinais. E que grande oportunidade para a iniciativa privada abrir novos pontos de telemarketing para saber a opinião dos contribuintes, se os gatinhos devem sair ou ficar, gerando novos postos de trabalho e colaborando assim para o verdadeiro objetivo para o qual o homem foi criado: a felicidade! Por isso, afastemos as mesas, furemos a fila da votação dos projetos de lei, abram espaço no Diário Oficial para um possível decreto que "dispõe sobre a regulamentação de gatos no centro administrativo".
Tantos desvios de argumentação, escolhendo uma direção na crônica que em si não nos levará a lugar algum, não mudará o destino político do país, pelo contrário, nos deixará à deriva ainda mais na superficialidade de nossas discussões, podem ser apenas um pretexto para exercitar a habilidade circense do cronista, equilibrando extensos parágrafos sobre vírgulas, fazendo as idéias girarem como pratos, com a futill finalidade de hipnotizar a platéia. A acusação não tardará da boca dos que não se permitem arriscar, o que para o escritor, no direito de réplica, é um álibi para não se discutir a questão, fingindo querer, o que para mim também não deixa de ser uma forma circense de enganar-nos.
Portanto, chamem os parnasianos e vamos defender os gatos e a falta de objetivo de suas existências no verso e na administração pública municipal.


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