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Friday, January 06, 2006

Lipoaspiração e banalidades

O melhor genérico do lexotan no mercado se chama ignorância. A vantagem é que vc não precisa de dinheiro para comprá-la, não precisa sair de noitinha na chuva em direação à farmácia mais próxima, e até se economiza alguns trocados com tranqüilizantes. Não se compra na versão comprimidos, tampouco em recipiente líquido. Está em estado gasoso, por aí, livre para quem quiser respirá-la. A ignorância ajuda vc a viver a vida, a flanar pelo mall do shopping, enquanto namora as vitrines da Richard's e da Chocolate, para ficar numa argumentação unissex. É a vida que vc exigiu de Deus antes de nascer. E Ele, em sua infinita bondade, o atendeu.

Vc faz, então, a sua parte para evitar surpresas desagradáveis. Começa por ir morar num condomínio caro da Zona Sul, daqueles com cerquinha na portaria, de aço inoxidável de preferência, para evitar cortar a mão nas ferrugens e pegar tétano, alterando totalmente os desígnios da gloriosa vida para a qual foi criado. As escadas da fama te serão sempre acessíveis.
Na praia, a incontinência dos pombos quase destrói sua rotina de solzinho e sundown 40, estragando a sua manhã de terça-feira, em mais um dia de folga do escritório de advocacia. Mas, vc vai resolver tudo ligando para o seu amigo que trabalha no setor de leitores do Jornal O Globo, reclamar da prefeitura e da proliferação de pombus avictícios na orla do Leblon.

Nem a doença te tira do prumo. Vc tem um plano de saúde, é uma habitué da recepção do Barra D'Or, adorada pelos funcionários, para os quais vc sempre deixa uma lembrancinha quando vai embora do quarto 13 (para dar sorte), geralmente uma caixa de bombomzinhos da Kopenhagen com laçarote azul bebê e um cartão onde se lê um seco, mas objetivo, "Obrigado". Vc economiza nas palavras.

Vc aprendeu no cursinho de Yoga, das quintas-feiras, a relativizar tudo. Até mesmo aquela dor no peito que vc achava que era um ataque cardíaco, um ataque que desta vez inevitavelmente te levaria para uma linda pousada no firmamento celeste com vista para um jardinzinho de nuvens, com cafezinho da manhã colonial servido pelo santo das suas orações...até mesmo essa dor não te alarma, depois que vc participou de uma palestra na Academia Brasileira de Letras, como convidada especial, sobre os sintomas desse problema e descobriu, com um pouco de picardia no canto da boca, que podem se tratar de gases.

O chá estava ótimo. O palestrante, um jovem escritor de auto-ajuda, figurinha carimbada nas listas de mais vendidos do JB, mostra em seu Powerpoint inúmeros exemplos de pessoas que, como vc, humana, deram entrada nos melhores hospitais da cidade e, ao serem examinadas, foi detectado que eram apenas gases de tanto consumo de coca-cola ligth e cereja, excessos do último reveillon. Ou seja: um simples peido resolveria tudo.

Vc se maravilha com a descoberta óbvia e faz uma citação para a posteridade, anotando em seu novo diário de 2006: "não se pode morrer de véspera. Take it easy. Às vezes, um peido debaixo dos leiçóis quentinhos resolve tudo". Isso é muito engraçado, vc pensa. E ri, sozinho, mas feliz, na sala de estar, enquanto toma seu agradável espumante.

Enfim, nada pode atrapalhar a sua trajetória de vida. De criança especial no passado, vc hoje tem confiança suficiente para se achar quase um quarentão imortal. Três dias antes do Dia de Reis, vc finalmente vai ver a árvore de Natal da Lagoa com o seu novo namorado e sua expressão facial se altera, como se tivesse recebido uma iluminação piscante e vc descobre sua vocação para ser mãe. Quer ter um filho e pretende fazê-lo esta noite mesmo, afinal vc está muito excitada com a água de côco. Não, não, não esta noite, vc precisa primeiro fazer os exames pré-natais para evitar que uma trissomia do cromossoma número 21 da Síndrome de Down atrapalhe suas idas ao shopping no sábado à tarde.

Vc é um homem instruído, Antero, penso com meus botões, enquanto dirijo, e, como sou de carne e osso, a despeito de acreditar que na evolução da espécie, me distraio com as curvas silenciosas da mulher da playboy no outdoor da Voluntários da Pátria. Atropelo uma criança, mesmo que involuntariamente, já que a menina tb não estava olhando antes de atravessar a rua. O fato de o sinal estar aberto para mim aplacou qualquer possibilidade de culpa, mas, mesmo assim, abro mão de alguns dos ensinamenos apreendidos no cursinho da Cruz Vermelha na Faculdade da Cidade e a levo para o Hospital Miguel Couto. Tenho caráter, atributo indispensável aos predestinados à felicidade.

Aparentemente, apesar do choro incessante dos primeiros minutos, foi só uma leve batida na clavícula. No caminho para o hospital, enquanto dirijo e penso numa lista de testemunhas a meu favor no atropelamento, me surpreendo com o pedido de desculpas de Patrícia, a mãe, atribuindo à desatenção da filha toda e qualquer responsabilidade pelo acidente. Bom, já tenho o primeiro nome da lista.

Ao mesmo tempo, já acomodada com minha solidariedade no banco do carona, Patrícia vai me bombardeando com informações da sua privacidade, uma sucessão de desgraças de uma favela de Coelho Neto, começando pelo filho desaparecido há cinco meses, passando pela casa dela que caiu, a tentativa de levar a família para morar num abrigo da prefeitura, e terminando com o atropelamento propriamente dito. Uma tortura desgastante, mais asfixiante do que o incessante trânsito de Botafogo à Gávea àquela hora da manhã.

Já no Jardim Botânico, 11 minutos atrasado para o trabalho (estou cheio de tarefas no jornal), paro no posto de gasolina, peço R$ 50 de combustível e Patrícia se assusta, diz que é caro demais andar a carro. Ela conta que com R$ 50 faz as compras da semana. Meu tanque equivale ao consumo de uma família de Coelho Neto.

Enfim, há uma moral em tudo isso, sempre há. Isso aqui não há de ser um simples bombardeio de acusações aos ricos e à sua insensibilidade. Tampouco um enrustido despeito de pobre. Sei ser bastante maniqueista quando quero e esta é uma dessas belas oportunidades na tarde de sol. Para não desperdiçá-la, vou dizendo, incomode a quem incomodar, que talvez nos escondamos atrás de cercas e de vidros filmados, enfurmados entre a Zona Sul e a Barra da Tijuca, correndo a 120 km pela faixa esquerda da Linha Amarela, porque estejamos tentando esconder de pessoas como Patrícia os valores de nossas contas em restaurantes, nossos gastos em postos de gasolina, nossos débitos de compras de Natal. Viva a ignorância.

Lembro claramente de uma ocasião em que estava fazendo uma matéria numa rua de Laranjeiras, de classe média alta, até pouco tempo vigiada por um segurança numa guarita. Ao me surpreender com a ausência do segurança (a aguarita permanecia lá), perguntei a um porteiro da vizinhança o motivo e ele me respondeu com ressentimentos visíveis: "O pessoal o demitiu porque ele queria ter a carteira assinada. Esses caras gastam uma fortuna em seus almoços..."

Ao que concluo que nossas preocupações são muito mais localizadas.
Nada que uma lipoaspiração não resolva.

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