literalis

Um site para eu poder falar o que eu quiser sem revisor e editor na minha cola.

Monday, April 17, 2006

Não engane o Fantástico

Há algum tipo de ingrendiente na cerveja que, após o vigésimo copo, te leva inevitavelmente ao submundo da desilusão. Sua roupa passa a ser mais suja, vc menos digno da sua vida, sua mulher mais gorda, a grama do vizinho mais verde do que a sua. Não tenho dúvidas disso. Uma variável dessa tese alcóolica é a impressão sobre o país que vc mora. Faça a experiência (se tiver mais de 18 anos): sente na mesa do boteco, sozinho ou com um amigo, tome umas e outras e, então, expresse com a mão espalmada sobre o peito o que vc sente pelo Brasil. "É um país de ladrões", vc diz antes mesmo de ver a conta do bar.

Esse efeito neurológico não acomete a todos, mas, confesso, sou daqueles que são inevitavelmente afetados pela cor amarelada do chopp. Sou um pessimista. Se minha mulher se resigna, é porque há casos piores, pessoas com as quais vc evitaria cruzar no passeio para não ter que rever a sua impressão sobre o belo domingo de sol, os bailes de debutantes e a pureza das camélias. São aqueles que, para se desiludirem, basta o corante do suco de laranja, não há substância ativa que lhes dê a felicidade.

O fato é que, ao casar, ganhei de sobra um sogro tão pessimista quanto eu. A empatia foi inevitável: assistimos aos jogos do futebol grego juntos, o que irrita terminantemente minha esposa, torcemos unidos contra a seleção argentina, xingamos o vizinho em côro e temos uma percepção muito parecida do Brasil e da cerveja. Estamos em plena sintonia. Um dia desses até eu me surpreendi com sua sabedoria, enquanto ele se esforçava em equilibrar o copo/refil na mão trêmula. A menos que ele tivesse lido isso em algum lugar, o que se trataria de um plágio imundo, ele teve uma grande iluminação: "Neste país, vc pode matar os pais, o que não pode é enganar o Fantástico".

Já que estamos falando de bebida, ele se referia à outra loura perigosa que afogou a classe média numa profunda desilusão, ao matar os pais em 2002 e, assassina confessa, ser solta no ano passado por um hábeas-corpus do Superior Tribunal de Justiça. Jovem e bela, Suzane von Ricthofen não ficou conhecida nacionalmente por sua beleza nem por sua juventude. É a menina que poderia, mas não saiu de um cursinho de teatro do Tablado diretamente para a Malhação. Saiu de uma família de classe média do Brooklin dando créditos ao nosso imaginário de violência, ampliando nosso espectro de medo da periferia para o quarto do filho ao lado.

Mórbida, obscura sob seus cabelos curtos, ela ressurgiu vestindo a sua melhor camisa da Minnie e suas melhores pantufas de sapinho, apareceu numa noite de domingo no Fantástico, fingiu chorar, fingiu ser boa, tentou enganar-nos como faz um político sujo, mas foi desmascarada por uma repórter sagaz, tão jovem e bela quanto ela, que sabe bem os enganos e subterfúgios da beleza e da juventude. Não engane o Fantástico. Está aí o exemplo do bicho papão do Brooklin: Suzane voltou para a cadeia, restabeleceu-se a ordem e o progresso virá com o tempo.

Agora, vc que é inteligente, onde tudo começou? Quem, baseado na lei, libertou a atriz, concedeu-lhe um habeas-corpus, deu-lhe nova oportunidade nos palcos, vendeu-nos os ingressos? Se não gostamos do espetáculo, que culpa temos nós?

Friday, April 07, 2006

Estabilidade para os gatos

Na iminência de perderem a companhia dos gatinhos que circulam há anos pelo Centro Administrativo da Prefeitura do Rio, os servidores que ali trabalham já pensam em apelar para uma decisão salomônica de sua eminência, o prefeito. Não, não se trata de uma pendenga semântica. Os caridosos funcionários não aceitam, como quer a Secretaria de Defesa dos Animais, a transferência para o Campo de Santana dos bichanos, chamados carinhosamente pelos mais franciscanos não de vossa excelência, tratamento mais apropriado com as autoridades vizinhas, mas de fofinhos, de lindos e de qualquer adjetivo que conste do Aurélio ao Houaiss e que expresse amplamente a total domesticidade de nossos sentimentos ante um irresistível animalzinho abandonado.

Já tem gente - os pessimistas, os menos entusiastas- dando-se por derrotado, suspirando das janelas das repartições públicas, lamentando, choramingando por um saudoso miau. Será necessário retirar do centro administrativo tudo que é simples e belo para só então restar a burocracia municipal, a mobília da repartição, que é nada mais do que o tronco prensado, industrializado, transformado em algo funcional? Caberá aos funcionários apenas se aterem a seus carimbos e computadores, dando prosseguimento aos intricados processos administrativos, o que, de outro ponto-de-vista, é dar prosseguimento à vida, por mais chata que seja, em vez de cultivar a cada dia o pouco de super-herói que lhes restou, protegendo não a humanidade, mas uns poucos gatinhos, com os corações a disparar ante os certeiros pingos de chuva vindos do céu e, já num chuvaréu, os pêlos totalmente molhados?

Essa pode ser uma discussão menor, um gato no pátio a tremer, mote para parnasianos. Se bem que faço um convite para que discutamos sempre tudo que cerca a política ou os políticos. Hoje, é o gato com o seu novelo, imagem infantil, mas amanhã podemos ser chamados a nos indignarmos com a fraude na licitação, com a crise na saúde e, então, estarão em dia nossos argumentos, nossa retórica de botequim, aquela que não tenha simplesmente o objetivo de argumentar contra ou a favor dos 10% do garçom?

Se fosse um desenho animado, não nos preocuparíamos, o bichano não tardaria a abrir o guarda-chuva e a dançar serelepe. A felicidade estaria garantida. Nada de discussão aprofundada, só superficialidades coloridas. Mas é a vida real. Então, quantas crianças, futuras eleitoras, enquanto tentam entender essas frases longas, por entre vírgulas escorregadias, não estarão neste momento tomando partido não dos burocratas, mas dos gatinhos abandonados e sem-teto, guardando assim em segredo seus ressentidos votos para a maioridade, quando o poder ainda existirá, necessitando de alguém que o ocupe e de apoio popular. Quantas velhinhas não estão mencionando lembranças de gatinhos brincando com novelos, mensagens subliminares de que ainda somos pessoas com sentimentos.

Que esta discussão seja ao menos uma grande oportunidade para vereadores prometerem o bem; para o prefeito, aprová-lo, regulamentá-lo e até mesmo, se for necessário, fiscalizá-lo, amenizando nossa indiferença em relação à situação dos hospitais, das escolas e das crianças nos sinais. E que grande oportunidade para a iniciativa privada abrir novos pontos de telemarketing para saber a opinião dos contribuintes, se os gatinhos devem sair ou ficar, gerando novos postos de trabalho e colaborando assim para o verdadeiro objetivo para o qual o homem foi criado: a felicidade! Por isso, afastemos as mesas, furemos a fila da votação dos projetos de lei, abram espaço no Diário Oficial para um possível decreto que "dispõe sobre a regulamentação de gatos no centro administrativo".

Tantos desvios de argumentação, escolhendo uma direção na crônica que em si não nos levará a lugar algum, não mudará o destino político do país, pelo contrário, nos deixará à deriva ainda mais na superficialidade de nossas discussões, podem ser apenas um pretexto para exercitar a habilidade circense do cronista, equilibrando extensos parágrafos sobre vírgulas, fazendo as idéias girarem como pratos, com a futill finalidade de hipnotizar a platéia. A acusação não tardará da boca dos que não se permitem arriscar, o que para o escritor, no direito de réplica, é um álibi para não se discutir a questão, fingindo querer, o que para mim também não deixa de ser uma forma circense de enganar-nos.

Portanto, chamem os parnasianos e vamos defender os gatos e a falta de objetivo de suas existências no verso e na administração pública municipal.