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Thursday, January 10, 2008

Enfim, brasileiros...

Ele já não vinha demonstrando, havia algum tempo, aquele velho orgulho de ser brasileiro, em especial carioca, que estampava desde os tempos de Policarpo Quaresma. Nitidamente estava deprimido, apesar de continuar mantendo, mais por tradição do que por qualquer outro motivo, a barba longa, alva, o que lhe dava um aspecto hippie, relaxado, de quem vive despreocupadamente entre as montanhas e o mar.

Mas, no fundo, por trás de todas as aparências, vinha passando por uma transformação lenta e gradual, sim. Passou a evitar os passeios pelos calçadões da Zona Sul, o chopp no domingo no Bracarense ... Disso a evitar os túneis da cidade foi um passo. Começou a se esquivar de sair de casa, temendo a bala perdida. Deixou as contas se acumularem sobre o aparador do conjugado, receoso do mal uso do seu dinheiro pelas autoridades públicas. Não queria ser conivente.

Definitivamente, Deus estava envergonhado do que lia e ouvia nos últimos anos sobre o Brasil, seu país, sua morada eterna. Ou seria nas últimas décadas, últimos séculos? É ruim ser tão velho, ou, por outra, estar vivo há tanto tempo, ele pensava. Não era necessário ser psicólogo para perceber que o Divino estava definitivamente cansado de ser brasileiro. Foi por isso, e por mais nada, que procurou o consulado espanhol. Queria saber como adquirir a cidadania européia. Mudar de ares.

Por que a Espanha? Nada em especial. Foi, na verdade, sua segunda tentativa. Faz poucos dias, tinha tentado comprar uma passagem para os states, como parte de um plano mais amplo. Seria o primeiro passo para um tentador casamento de conveniência com uma yankke numa igreja fastfood, em busca do disputado greencard. Mas, daquela vez, Seu pedido tinha sido negado, a despeito de Sua infinita bondade. Soube, por fontes celestes, que o diabo tinha soprado no ouvido de alguém grande de lá, dizendo que Deus consumia muita energia, palavra que foi confundida , devido aos percalços da lingüística, com o seu significado strito senso de combustível. E, como todos sabem, nos Estados Unidos, os utilitários são prioridade.

Oficialmente, recebeu de um funcionário do consulado americando, que fizera a entrevista, a resposta afrontadora de que ter como ocupação atual "trabalho em prol da humanidade" era algo muito vago. O funcionário pediu perdão, mais como proforma do que por temor divino, é verdade, e despachou Deus, sem antes não submetê-lo à constragendora porta giratória com raio-x. O bip não tocou. Só faltava essa.

Como bom brasileiro, mesmo que tal adjetivação vá contra a vontade Dele mesmo por ora (nisso deu Ele dar-nos o livre arbítrio ), Deus não desisitiu. Enquanto esperava o atendimento, na antesala do consulado espanhol, dividindo o sofá e os olhares com três jogadores de futebol da segunda e da terceira divisões do Rio, o Supremo folheava algumas revistas, só para exercitar o espanhol, língua que Ele mesmo criou lá nos idos de Babel. Estava quase cochilando, quando ouviu seu nome:

-Deus?

-Sim, eu O sou.

-Entre, por favor. O senhor tem pai espanhol, mãe, avô? - pergunta a atendente, carioca da gema, mas com uma empáfia um tanto quanto européia.

Deus ainda pensou em lançar mão de um "sabe com quem vc está falando". Mas, desistiu. Poderia ser mal interpretado.

-Ora, Eu sou o Pai. Tenho um filho, serve? Mas ele morreu em circunstâncias ainda não muito bem explicadas. Ele era de Belém. É na Europa?

-Que eu saiba é no Pará. Por que o senhor quer a cidadania?

-Estou cansado de ser brasileiro. Não quero mais. Não me identifico mais com os homens daqui. Entendi o recado: Brasil, ame-o ou deixe-o. Tô fora. Cansei. Basta.

-Mas, o Senhor afirmou, aqui, na sua ficha, na lacuna atribuições, que "o homem foi feito à Sua semelhança". Não seriam seus filhos os homens daqui?

-Eu, não. Vc entendeu mal. Estava me referindo à humanidade como um todo. Tem liquipaper?

-Mas, quando o Brasil ganhou cinco copas, não teve um dedinho Seu. Foi o que disseram.

-Não, de jeito nenhum. Isso é o que comentam os argentinos. Só porque eu disse que o tango era uma dança do diabo. O quarto mundial, por exemplo, foi obra do Romário.

-Mas o Romário diz que ele é o Senhor.

-Não, de jeito nenhum.

Tão logo Ele concluiu a última das três negativas, recusando-se terminantemente a continuar sendo brasileiro, um galo cantou de um terreiro suburbano da cidade. Deus saiu da sala correndo e, chegando à rua, despencou num choro copioso.