Ovelha, mulher e trabalhadora
Ainda criança, depois de assistir pela primeira vez a "2001, uma odisséia no espaço", fui acometido por uma paúra inesperada e fugi do que seria o meu primeiro beijo na boca. Temi me apaixonar pela menina de 12 anos, casar, ter filhos e ver minha nova família, logo depois, aniquilada pela vilania dos PCs.
Hitchcock também teve uma parcela de culpa pela minha infância introspectiva. Durante muito tempo, preferi ficar trancafiado em casa a brincar na praça da esquina, temendo ser atacado por milhares de pombos, numa versão tupiniquim de "Pássaros", do cineasta britânico.
Hitchcock e Kubrick erraram feio. A aposta certa seria as ovelhas. É com elas que temos que nos preocupar.
Essa fobia anunciada começou quando, sorrateiramente, as ovelhas tomaram as vagas nos laboratórios de uns poucos ratinhos em experiências científicas. Tudo sem processo seletivo, fruto de um baita pistolão dos criadores do quadrúpede. Lobby forte. Afinal, por que a ovelha e não a cabra? Agora, o que acontecerá, depois que cientistas americanos anunciaram ao mundo a criação do primeiro mamífero da espécie com 15% de células humanas e 85% de células animais?
Vou perder meu emprego para uma ovelha!!!
Resisti ao avanço dos computadores, mas estou ficando velho e cansado, presa fácil para uma ovelhinha carreirista saída de uma universidade de Nevasca. Vou ter que aprender a ficar de quatro para competir? Temo por menos vagas nas universidades, super-população na China, acesso à internet cada vez mais congestionado.
É bom lembrar que já houve o precedente Dolly, a ovelhinha camarada, mas, felizmente para os imigrantes que tentam a qualquer custo atravessar a fronteira entre o México e os EUA, ela não era muito chegada ao trabalho, não ofereceu concorrência. Desde cedo, Dolly foi preparada para a fama. Desde a concepção. Seu pai, um cientista de meia-idade obcecado por séries da Sony, desejoso de ter filhos, embora fosse estéril e tivesse pouca intimidade com o sexo oposto, certa noite, fez um bom uso de tubos de ensaio e de ampulhetas e conseguiu a tão almejada paternidade.
Não houve sexo, mas a igreja jamais perdoou o papai Dolly. Um prosélito de Darwin, acusou, taxativa assim. Atacava-o nas homilias. Ele não entendia. Afinal, daria sua filha à humanidade, não para morrer numa cruz, como Cristo, mas para ser a primeira de uma geração que viria para nos aliviar da longa espera das filas de transplantes.
Os anos passavam, e Dolly crescia. Cultivava belos cachinhos de uma angelical criança. Quando pai e filho saiam de casa, para as visitas diárias ao laboratório, os vizinhos sempre mostravam um carinho efusivo, abraçavam o filhote, beliscavam sua bochecha.. solidarizavam-se com as assaduras.
O pai, de tão orgulhoso, sequer percebia a expressão facial enigmática da ovelhinha. Ela lembrava os suicidas esquadrinhando a altura no peitoral. Sua carinha era triste, mas papai cientista lhe prometia um futuro brilhante, falando-lhe ao ouvido, baixinho, pela língua do "mé". Dolly era um ovelha, não era um cabrito, mas os dois logo concordaram que o som era o mais apropriado para a comunicação doméstica.
Via-se na cara, na qual já nascia um bigode de bode que ela dizia ser grunge, que o mamífero desprezava a humanidade. Prostituir-se-ia. Mas, rebelava-se matando humanos nas máquinas de fliperama, aonde ia diariamente com sua babá. Por que não era humana?, perguntava-se ainda criança, enquanto brincava na montanha-russa da Terra do Nunca, abraçada a um excitado Michael Jackson.
No auge da popularidade, Dolly apertou a mão de chefes de estado, viajou o mundo todo. Emocionou-se especialmente quando visitou a Torre Eiffel. Na adolescência, fumou, mas não tragou. Foi o que disse para se livrar da cana. Quando precisou de emprego, pensou em seguir a política, mas desistiu, afinal continuava sendo sustentada pelo pai e pela ciência, enquanto durasse essa vida de cocota, estava bom.
Fez novas amizades no business, inclusive com Britney Spears, com quem foi a festinhas do pessoal do cinema da Califórnia.
Por fim, Dolly morreu jovem, ideal de uma juventude transviada. Somente meia dúzia de cientistas solitários foram ao enterro. Mas, a ovelhinha entrou para a história, por seus préstimos à ciência e à humanidade.
Dez anos se passaram desde Dolly e, até hoje, não houve um filme digno dessa fobia. Talvez porque correria o risco de virar piada e se transformar em roteiro satírico de Woody Allen. Por sinal, o cineasta foi o único que vislumbrou um pouco dessa convivência ovelha/homem em "Tudo que você queria saber sobre sexo...". Mas, aí, foi outra obsessão.

