Votei sim, mas agora que perdi, vamos ao que interessa:
Cabe ao Estado cumprir suas obrigações constitucionais de dar segurança à população. Em vez disso, os governos pagam mal a seus policiais, não controlam as fronteiras, não defendem o cidadão. O que é ruim agora pode ficar pior. Basta que, em grande escala, esse mesmo cidadão, insatisfeito, tome para si tal responsabilidade, comprando revólveres para se defender, defender suas famílias, fazendo coro a uma mentalidade atrasada de que ao homem/progenitor foi dada a tarefa divina de cuidar/defender a qualquer custo a família, independente do quão cristão possa ser esse homem da porta de casa para fora. Vamos, então, esquecer que todo cidadão merece nosso cuidado, não podendo haver diferença entre pobres e ricos, sendo estes muito mais capazes de se defender e aqueles muito mais suscetíveis à violência, basta ver que a insegurança é muito maior na parte Índia da cidade do que na parte Europa. Vamos deixar que a classe mais abastada possa gradear seus condomínios, contratar seus seguranças, que na maior parte das vezes são policiais...
...policiais públicos, trabalhando em turno extra, que deveriam estar defendendo não uma família mas todas as famílias. Em vez disso, complementam suas rendas defendendo o patrimônio da elite. Não é nossa família tão importante quanto a família de qualquer um? Então, pós-referendo, está combinado: vamos deixar que a Veja dê o tom da nossa democracia, vamos deixar que os diretores dessa revista dirijam o país, semanalmente, com decretos editorias em sua páginas, determinando que só existem sete motivos para ser contra e nenhum motivo para ser a favor do fim do comércio das armas. (...)
Como a expressão diz, a segurança deve ser pública e, portanto, solidária, onde todos devem contribuir individualamente e proporcionalmente aos seus bens, para que todos, inclusive eu, vc e os menos favorecidos possamos ter segurança gratuita, sob custódia do estado. Ao invertermos a lógica, o que era para ser um direito público, uma das poucas responsabilidades da economia de mercado na era da globalização, passa a ser um dever de cada cidadão. Defenda-se como puder.
Veja, isso não é o que vimos com a saúde pública há algumas décadas? Não é o mesmo ciclo? Afinal, uma saúde pública com deficiências foi rejeitada pela elite, que se bandeou para os planos de saúde, sucateando-se os hospitais públicos, dos quais os corredores passaram a ser visitados apenas pela senzala. O que era ruim com o comprometimento das elites se tornou pior sem elas e te desafio a arrancar de um rico ou milionário uma autópsia, que não seja clichê, dos hospitais. Simplesmente porque ele não vai a um hospial público. No máximo, passa em frente ao Miguel Couto com seu lindo e importando Mitsubshi, quando das portas da unidade para dentro falta até esparadrapo. Por isso, nossas elites continuarão desconhecendo o Brasil, porque, a exemplo de séculos anteriores, se acham um reduto de civilização dentro da floresta de Pau-Brasil.
Me assuta o desdém das classes dominantes pela coisa pública no Brasil, mas isso é facilmente explicável, já que os bens privados estão nas mãos dessa mesma elite, que dependendo do ramo de atividade, lucram com ela, se donos, ou se servem dela, se consumidores. Pouco importa a coisa pública, pois afinal há apenas meia dúzia de coisas (para não falar de pessoas) que não se pode comprar no país, inclusive no âmbito público: uma vaga no concurso vale alguns milhões, passar as muambas na fila da alfândega...
Vamos deixar que a Veja diga, vitoriosa mas desrespeitosa, mesmo antes da contagem final de votos do referendo, que o povo decidiu pelo não e agora vamos ao que interessa. Democracia zero, Veja dez. Vamos deixar que as elites repitam o exemplo de seus ancestrais, quando foram contra os abolucionistas*, porque queriam governar com os grilhões da escravidão na mão direita e a prerrogativa de uma carta de alforria na sinistra.
Vamos deixar que tudo fique como antes, que a elite mantenha um status quo, mesmo que seja se utilizando do deslumbramento de um trabalhador honesto que tão magicamente chegou à Presidência do Brasil.
Vamos em frente, simplistas e sem culpa. Vamos ao que interessa.
(*a tese do anti-abolucionismo como direito foi primeiro levantado pelo escritor Luis F. Veríssimo)