Carta a um amigo...
L-E-D-O M-I-S-S-I-O,
não se trata de discutir a relação e talvez isso não tenha a menor importância na sua vida. Afinal, não nos vemos há tanto tempo, que pareceria a história do marido que vai comprar cigarros e volta dez anos depois para aparar as arestas e pedir um fósforo. Mas vou arriscar (ou riscá-lo):
Talvez tenha sido apenas uma pedra no seu caminho, um fio de cabelo a menos na sua cabeça. Algo pequeno para se incomodar em meio a um mundo com tantas atribulações, tantos textos a escrever, tantas cenas a dirigir, tantas entrevistas a dar, tantas... Vc pode até alegar que discutir a relação é coisa de mulherzinha (e há uma carga de ironia nisso), o que se constata pelo senso comum. Homens crescidos que nos tornamos, não deveríamos nos ofender por tão pouco, dentro da linha homem não chora.
Mas o fato é que me incomodei bastante com a sua indelicadeza. Ao que vc pode responder foda-se - veja: estou tentando cercar seu discurso a todo custo, derrubando suas respostas possíveis, para que vc não tenha a chance de ser novamente indelicado. Talvez aqui vc já tenha desistido de continuar a ler esse e-mail, ou por falta de tempo, ou por falta de paciência. Ou, o que mostraria uma outra faceta da sua indelicadeza, talvez o tenha mostrado para os seus atores, que gesticularão e farão disso tudo uma grande comédia dell'arte. E de mim, um bufão.
Talvez.
Entretanto, como eu dizia, achei indelicadeza. Talvez por eu ter insistido com minha mulher em irmos à sua peça de teatro, apesar de ela ter sido extremamente relutante porque tínhamos trabalhado bastante em pequenas atribulações domésticas, essas sim (considero) pequenas pedras no caminho. Talvez por eu ter sido convidado pessoalmente por vc, uma semana antes, enquanto comprava ingresso para a peça de uma amiga que, ao final da apresentação dela naquele dia, nos deu um abraço carinhoso e grato. Talvez por eu ter feito tanta questão de ser gentil e ir falar com vc...
Sendo mais objetivo, fui te dar um abraço no fim da sua peça e vc NÃO QUIS falar comigo (não há outra interpretação), fez questão de não falar, como se invisível eu fosse. Uma indelicadeza não só comigo, mas com minha mulher.
Veja bem, L.e.d.o.: gostei muito da sua peça. É uma opinião sincera. Muito bem escrita, amarrada, ótimas piadas, bom ritmo, ótimos atores. Uma coisa ou outra (mínimas) não gostei, para ser 100% sincero, o que me garante a legitimidade da razão. Mas, ser gentil e educado também é uma arte que, infelizmente, vc não cultivou dos seus tempos de juventude. Uma pena. Isto aqui não é apenas uma fábula repleta de lições de moral. Foi como REALMENTE nos sentimos.
Talvez vc, quando andava na mesma calçada comigo, nos tempos de grupo teatral, tb tivesse se sentido dessa forma, caso fosse vc o objeto e não o sujeito dessa história. Para o bem ou para o mal, vc hoje atravessou a rua, mudou de lado, e passou a trotar pela calçada da fama, né L.e.d.o.?
Repito: tudo isso pode não ter significado nada para vc, insignificantes estas últimas e aquelas primeiras palavras, as quais somadas podem ter servido apenas para acumular pó enquanto vc as lê; uma discussão ao rés. Afinal, é bem provável que só voltemos a nos reencontrar daqui a dez anos, e novamente depois mais dez anos sejam necessários, e ainda outros dez para nos vermos numa esquina do Leblon, eu pobre, vc rico; eu feliz, vc frustrado; eu casado, vc solteiro; eu doente, vc sadio - há um número infindável de variáveis, numa equação que só o destino pode prever o resultado de tantas combinações, e mesmo assim trate-se de evitar cruzar o destino com o acaso, o que esvaziaria o primeiro de toda, qualquer e necessária lógica divina. Oxalá que, nessa equação, os sentimentos sejam mais do que o resto (são os votos de um feliz natal e um próspero ano novo).
(...) Ao que perceberemos que a vida se tornou uma sequência harmônica de intervalos de décadas até a morte, esta sim digna de nossa preocupação. Se a distância de tempo entre nascer e morrer pode ser uma simples progressão aritmética, para que complicar? Então, passados os anos, seremos dois velhos (o reumatismo o dirá) perto do fim, talvez vc tendo a seu favor o arrependimento e eu tendo contra mim o ódio, tudo fruto de um flash back de dois, três segundos na entrada de um teatro que, demolido, estará apenas na nossa memória como parte disso tudo.
Um abraço, Antero.
E merda para vc.

1 Comments:
É uma bela resposta à complexidade do ser humano, que insiste em nos assustar todos os dias. É impossível entender o que se passa na cabeça das pessoas... Vida que segue. Sou mais você.
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