Um Tiro na Estrada Oceânica
(crônica de antero de 17/18 de abril)
O mundo se apagou no horror do sonho mau. O impacto durou poucos segundos, mas foi de uma força nuclear. Atordoado, ele olhou para o lado e percebeu que a cabeça dela pendia sobre o volante. O corpo já tinha a tração de uma marionete. Seus cabelos lindos ainda tinham movimento, descendo pelo pescoço e escorregando casualmente sobre os seios, uma cortina de renda nobre sobre o terror. Ele lhe deu um beijo no braço e sentiu a dor na dor. Percebeu que o braço dela já era um ramo seco marcando com sua sombra a sombra da noite, um relógio mostrando a passagem da vida, ao mesmo tempo absorvido pela precisão do tempo.
Olhou pelo vidro dianteiro trincado e viu uma infinidade de paisagens sobrepostas no escuro da estrada: a curva sobre a curva, a estrada sobre a estrada, o mar sobre o mar. Viu imagens do presente se sobreporem às do passado. No carro, um sangue encorpado escorria pela face direita da mulher. Ele quis cegar-se, abortar aquele pequeno assassino do útero da mãe, antes mesmo que o passado se fizesse presente. Também assustado, o menino já se escondera na moita, em algum lugar, agora não mais como o predador, mas como o urubu que espera o cheiro se propagar. Que aguarda a batida em retirada do parente condoído, abandonando o corpo sem calor à própria sorte, que sorte alguma jamais teria novamente, tampouco azar, já que só à vida isso tem sentido.
O assasino só queria devorar os restos de sua vergonha diante de Deus. No carona, ele, no entanto, queria agir, mas ficou estático observando o sopro da morte afastar a mulher de sua vida para o alto mar, num oceano de submersos e esquecidos. Sentado, ele apenas esperava aquela noite terrível passar.
(Em poucos segundos, já sentia a ausência da mulher. Se ainda o tempo e o espaço fossem imunes à linha da vida, se a lua não pesasse sobre as marés, se minha boca por ti respirasse, se a luz no mar infinitamente te banhasse...)
Tudo era igual às últimas notas do canto de um pequeno pássaro. Aquela paz que vem da terra, aquela paz maldita que a tudo enterra. Uma partitura delicada que poderia se esfarelar com um simples vento de outono. E isso seria menos violento do que um tiro na estrada, à beira do mar. Ele já era um órfão: necessitava dos cuidados quase maternos para ajeitar a roupa, amarrotada pelo susto. Ela permanecia bela, mesmo ensangüentada.
Esperou, então, a chegada da luz da manhã com seu metal afiado que agora só teria uma vida para ceifar. O dia finalmente chegou e trouxe as moscas da manhã. Trouxe os policiais e a morte definitiva.


0 Comments:
Post a Comment
<< Home